sexta-feira, janeiro 26, 2007

Update!

Oi pessoal!

Com o longo silêncio, muitos pediram notícias...

A casa aqui em Angra encheu de gente! Assim, agora tenho gente para me escutar 24 hs, pra eu fazer o download de 3 semanas de idéias... portanto vocês podem imaginar que eu estou que nem cachorro quando a dona chega em casa!

De qualquer modo, esta semana ainda teremos novidades por aqui!

Beijo!!!!

sábado, janeiro 20, 2007

Tão perto e tão longe

E eram duas garotas. Gabriela e Angélica... não se chega mais perto de Deus do que isso. Gabriela e Angélica cresceram no campo, cultivadas como a mais rara das flores. Gabriela e Angélica estudaram, disputaram o mesmo amor, traíram-se. Gabriela e Angélica se separaram. Cada uma levou sua vida, esquecendo da irmã. Nunca mais se falaram. Aos 50, Gabriela iria morrer por um problema no rim, precisava de um transplante. Aos 50, Angélica morreu, e seu marido, seguindo seu desejo, doou seus órgãos. Por estes desígnios da vida, o rim foi parar em Gabriela. Salvou sua vida, um encaixe perfeito, diziam os médicos. Não se chega mais perto de Deus do que isso.

Diziam os médicos que Juliana não podia ter filhos. Ela insistiu com Julio, seu marido. Um dia Alexandre nasceu. Saudável, perfeito, apenas não enxergava. Pra quem não podia ter filhos, não se chega mais perto de Deus do que isso. Alexandre cresceu, feliz. Fez amigos, teve amores, frustrações, conquistas e pequenos momentos de felicidade, como qualquer um. Dizem até que amou, uma ou outra vez. Julio, quando mais velho, aprendeu a tocar violão. Sonho antigo, sabem como é. Um dia escreveu uma música sobre o pôr-do-sol. O pôr-do-sol era como os últimos momentos com uma amada. O pôr-do-sol era o último fio de esperança. O pôr-do-sol era cor-de-rosa. Alexandre chorou ao entender o que era cor-de-rosa. Não se chega mais perto de Deus do que isso.

Cor de rosa, azul, amarelo, verde... Pintar era a vida de Henrique. Pintar paredes. Se casou com Sônia, que era ainda mais pobre do que ele. Um dia Henrique juntou dinheiro e levou Sônia de olhos fechados para uma casa, tão bonita como ela sempre sonhara, mas nunca tivera. Não se chega mais perto de Deus do que isso. Henrique foi criado num orfanato, não tinha nem tia ou irmão que o visitasse. Se alguém lhe perguntasse o nome de um amigo, ele enrubesceria de vergonha enquanto girava o pescoço. Tampouco tivera namorada antes de Sônia. Sônia teve 12 irmãos. Em seu barraco faltou arroz e feijão. Carne então, nem se fale. Mas carinho nunca faltou, isso nunca. Muito menos solidariedade. E assim, graduada – com louvor - em vida em família, tudo sobre um lar a Henrique ensinou. Não se chega mais perto de Deus do que isso.

Ensinou durante toda sua vida, essa tinha sido sua sina. Professor desde os 16, pela salas de Geraldo passaram princesas e presidentes, ministros e burgueses. E também gente abandonada, garotos de rua, o filho da criada. Não se chega mais perto de Deus do que isso. Aos 70, sofreu um acidente. Perdeu a memória, perdeu o dinheiro, perdeu a cabeça. Foi parar num hospício. Não lembrava seu nome, mas sabia seus direitos. Foi abusado e mal-tratado. Assim como os colegas. Rebelou-se. Protestou. Rebelaram-se. Protestaram. Apareceu até a mídia. Não se faz milagre, mas as fotos publicadas mudaram aquele mundo. E viraram até um livro. Não se chega mais perto de Deus do que isso.

Um livro, foi assim que começou. Eu o abri e lá dentro encontrei histórias encantadoras, que encheram minha vida de vida. Não se chega mais perto de Deus do que isso. No outro dia, abri outro livro. Lá estavam mais histórias encantadoras. Lá encontrei ainda mais vida para minha vida. Não se chega mais perto de Deus do que isso. No dia seguinte, descobri que em uma folha em branco poderia escrever quantas histórias encantadoras eu quisesse. E, se eu tivesse sorte, poderia encher a vida de outras pessoas de vida. E eu não chegaria mais perto de Deus do que isso.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

Emma Bovary c'est moi

Clássicos não são clássicos à toa. Mais de 150 anos (!) depois de ter sido escrito, Madame Bovary ainda é forte e simplesmente é impossível parar de ler depois das primeiras páginas. E dá para se imaginar o rebuliço de um livro deste após décadas e décadas de Romantismo...

Emma, a personagem principal, é um Dom Quixote do amor, leu romances em excesso e busca um amor cinematográfico (provavelmente, na época, um amor romanesco!?)... desses que a vida real não oferece... E sua busca é espirituosa, comovente, deprimente... e narrada com perfeição. Vejam aonde isso termina, e como Flaubert é sempre irônico e certeiro nas descrições...

“Depois o padre recitou o Miseratur e o Indulgentiam, molhou o polegar direito no óleo e começou a unção; primeiro sobre os olhos, que tanto tinham cobiçado todas as suntuosidades mundanas; depois sobre as narinas, gulosas de brisas tépidas e de perfumes amorosos; depois sobre a boca, que tanto se abrira para a mentira, que tanto gemera de orgulho e gritara de luxúria; depois sobre as mãos, que se deleitavam com os contatos suaves e, finalmente, na planta dos pés, outrora tão velozes quando corriam a saciar os desejos e que agora nunca mais tornariam a caminhar.”

Triste, mas perfeito...

Da série “Eu ADORO curiosidades”

  • A China tem mais de 160 (CENTO E SESSENTA) cidades com mais de um milhão de habitantes;
  • Sabem o TiVo, aquele aparelho nos EUA que permite às pessoas montarem sua própria grade programação da TV (você vai lá e coloca: hj às 20hs quero ver a novela das seis, às 21hs quero ver o jogo de ontem à noite e às 23hs o jornal nacional). Então... a maior audiência de todos os tempos do TiVo foi... com 180% de share (as pessoas viam e reviam infinitas vezes) o peitinho que a Janet Jackson pagou no Super Bowl de 2004!!!! Êêê sociedadezinha enrustida!

quinta-feira, janeiro 18, 2007

Strange attractors

Ufa! Finalmente venci a Viagem ao Fim da Noite e posso voltar ao mundo dos normais. Grata sensação... Comecei a ler o Mundo é Plano, do Thomas Friedman. Basicamente a tese dele é de que pós-queda do socialismo uma série de forças (10 forças) começaram a atuar sobre o mundo e levá-lo a um grau de integração muito maior do que já vivemos em qualquer outro momento (daí o mundo, que é redondo, voltar a ser plano).

Eu ainda não comprei a idéia 100% não. Todo analista tem sempre a percepção de que o mundo à sua volta nunca mudou tanto quanto se está mudando naquele momento. É um viés natural. Mas eu ainda estou na terceira força... vamos ver se chego lá!

No entanto, um ponto me chamou a atenção. A segunda força, pro Friedman, é simbolizada pela abertura de capital do Netscape. Quem se lembra do Netscape? O Netscape foi o antecessor do Internet Explorer, e foi o programa que mais colaborou para popularizar a Internet. Todo site era visitado via Netscape e o programa era de graça para usuários domésticos.

Até aí tudo bem, mas o Friedman ressalta um ponto-chave. Até então, toda a rede comunicação global que se desenhava usava sistemas proprietários. O que isso quer dizer? Quer dizer que existe uma rede interna na Universidade do Texas, por exemplo, e dentro dela as pessoas podiam escrever e-mails, enviar páginas, etc... mas quem estava na Universidade do Texas não podia mandar um e-mail para Universidade de Tolouse, ou para um amigo que trabalhasse na Volkswagen, porque estas organizações usavam seus sistemas proprietários, que não conversavam com o sistema da Universidade do Texas.

Ou seja, você tinha uma imensa rede que não conversava entre si. Alguns cientistas criaram alguns protocolos de comunicação abertos – ninguém pagaria para usá-los - que procuravam se tornar padrões globais, que teriam que ser incorporados a todos os sistemas atuais e vindouros. Pra quem gosta de informática, estes protocolos são os famosos TCP/IP, HTML, POP, SMTP, FTP que cansamos de ver hoje por aí.

O que o Netscape fez? Para facilitar sua popularização, usou um destes protocolos abertos, o HTML, ao invés de usar um sistema proprietário. Como conquistou um share enorme de mercado, não houve alternativa para os concorrentes (Microsoft principalmente) que não fosse seguir este caminho... e assim estava aberta a trilha para que criássemos uma única grande rede global.

Talvez, se não fosse o Netscape, estaríamos até hoje vendo uma briga de sistemas proprietários, e o mundo estaria bem mais fragmentado. As corporações amam sistemas proprietários, pois geralmente aumentam os seus lucros. Essa briga sistema proprietário x sistema aberto é recorrente no mundo tecnológico, vide Betamax x VHS, Linux x Windows e diversos que ainda veremos...

Mas o que me fascina nessa história toda? Bom, a leitura que faço é que os processos de evolução tecnológica constituem sistemas regidos pela teoria do caos. A posição inicial de todos os fatores envolvidos na equação é fundamental para o resultado, mas observando-se a posição de todos os fatores não é possível determinar o resultado final da equação, isto é, mesmo conhecendo-se as tecnologias, os players por trás das tecnologias, as demandas do consumidor não é possível dizer de início como estará o mercado dentro de alguns anos.

A teoria do caos possui um conceito muito interessante, chamado de strange attractors. São elementos que num sistema caótico atuam como aglutinadores e ajudam a conduzir o sistema para um determinado resultado. Seria algo como um imã, numa mesa repleta de peças de metal. Nem todas irão em sua direção, mas ele acaba influenciando bastante o desenho final.

Pois quando os cientistas desenharam protocolos abertos para a Internet e o Netscape os adotou, estava criado um strange attractor que determinaria em muito a característica aberta de nossa NET. O Netscape acabou sendo vendido para a AOL – que não soube o que fazer com o monstrengo – mas o mundo estava mudado para sempre.

Ok, ok, Marco. E daí? Bom, primeiro e daí que eu acho isso muito interessante! Fascinante mesmo. Segundo, e daí que nossas vidas são um sistema caótico. Estamos aqui, na loucura do dia-a-dia, com contas a pagar, sonhos por concretizar, amigos para curtir e não temos a menor idéia do que seremos daqui 10, 20 anos... E todos, queiramos ou não, temos nossos strange attractors... Um sonho, um traço de personalidade, um medo... elementos que constantemente, mesmo que de maneira inconsciente, são decisivos para definir nosso futuro. Uma reflexão sincera sobre quais os nossos strange attractors pode oferecer muitas luzes sobre o que conquistamos e o que deixamos para trás, sobre o que achávamos que queríamos, mas jamais perseguimos de verdade. E, ainda mais importante, se o que nos aguarda pela frente é realmente aquilo que achamos que queremos ser...

terça-feira, janeiro 16, 2007

Música e volume

Às vezes, quando escuto música, coloco o volume bem alto, muito mais alto do que se o próprio cantor e sua banda estivessem ao vivo, aqui, do meu lado... Não é sempre que faço isso, mas quando acontece, me pergunto o porquê!

Acho que é porque não quero admirar a música, sua beleza, quero na verdade que os sentimentos que ela me transmite transcendam o esperado, o humano, e tomem conta de mim por inteiro, como um mantra...

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Viagem ao Fim da Noite

Quero falar de Truman Capote e de seu livro Bonequinha de luxo que terminei neste final de semana (nada absurdamente especial, mas uma escrita leve e cativante – o último conto Memória de Natal, é um achado!), quero falar do tempo chuvoso e frio de Angra no sábado e como ele o impele à depressão (os índices altíssimos de suicídio nos países escandinavos não se devem à vida pacata, mas ao CLIMA horroroso, tenho certeza!), quero falar do quão ótimo foi ter a Ma, amiga desde os idos gevenianos, neste final de semana aqui, discutindo comigo mil teorias de vida, impulsos, sonhos, quero falar do formigamento de vida, do desejo de fazer, dos mil planos, mas não consigo.

Só consigo pensar e ler Céline, Viagem ao Fim da Noite. NUNCA li nada tão bom. A cada 5, 6 páginas, invariavelmente há um achado, um momento em que a descrição da podridão, da desesperança da vida tangencia a perfeição. Um pouquinho:

“O que é pior é que a gente fica pensando como que no dia seguinte vai encontrar força suficiente para continuar a fazer o que fizemos na véspera e já há tanto tempo, onde é que encontraremos força para essa providências imbecis, esses mil projetos que não levam a nada, essas tentativas para sair da opressiva necessidade, tentativas que sempre abortam, e todas elas para que a gente se convença uma vez mais que o destino é invencível, que é preciso cair bem embaixo da muralha, toda noite, com a angústia desse dia seguinte, sempre mais precário, mais sórdido.

É a idade que está chegando talvez, a traidora, e nos ameaça com o pior. Já não temos muita música dentro de nós para fazer a vida dançar, é isso. Toda a juventude já foi morrer no fim do mundo no silêncio de verdade. E aonde ir lá fora, pergunto a vocês, quando não temos mais em nós a soma suficiente de delírio? A verdade é uma agonia que não acaba. A verdade deste mundo é a morte. É preciso escolher, morrer ou mentir. Eu, eu nunca pude me matar.

O melhor portanto era sair para rua, este pequeno suicídio.”

Vou à rua, fazer compras. Volto logo! Beijos!

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Facilitando...

Pra quem me xingou nesses últimos dias falando que nunca lembrava o nome do blog, criei um atalho que é tão fácil e tão feio que não dá pra esquecer!
É só escrever isso que cai aqui!
;)

A ilha

Quem me conhece sabe que tenho um quê meio estranho com o mar. Deve ser coisa de mineiro, essa distância toda que temos do oceano pode tudo, menos fazer bem. Somado todo o tempo que eu passei dentro da água salgada não deve dar para completar nem um semestre, mas mesmo assim me sinto um velho marujo, um rato do mar e das ondas, como se ele me devesse um respeito especial somente pela minha existência.

É óbvio que essa arrogância desmedida já rendeu caldos homéricos, ataques de desespero lá no fundo, onde não dá pé e a correnteza puxa, além de uma série de outros episódios que flutuam entre o ridículo e o divertido, agora que já passei por eles. Mas nada nunca tirou da minha cabeça que fui feito para o mar e ele para mim.

Por isso, não achei nada estranho quando comecei a olhar para a ilha aqui em frente e a sentir que ela retribuía meus olhares. No começo foi essa paquera à distância, não declarada, esse jogo de dissimulação que é o alimento do desejo. Mas o jogo foi avançando e tornando o encontro inevitável. E era óbvio que o passo de aproximação teria que ser meu.

Como uma paixão pré-adolescente que renasce mais tarde na vida (dessas de condomínio para quem é de São Paulo, ou da menina da rua debaixo, para quem é do interior), eu me lembrava vagamente de já ter explorado aquele território uma vez. Mas não tinha tanta certeza assim. E, fascinante, não me lembrava do seu gosto.

Comecei a ensaiar minha visita. Há uns dois dias, peguei o caiaque e depois do deprimente, quase comovente, episódio de tentar passar a zona de arrebentação, me pus a remar. No caminho, eu me perdia entre observações e dúvidas. Meus braços estão queimando muito? Nossa, devia ter trazido uma barrinha de cereal. Eu consigo chegar e voltar? Mas à medida que eu me aproximava e a possibilidade da conquista se tornava mais e mais factível, eu me sentia tomado por uma certeza inevitável: eu não me interessava por aportar naquela ilha.

Chegar ali, pela porta da frente, e pisar em sua pedra como tantos já fizeram? Não. Aquilo não era para mim. Eu precisava circundá-la. A face norte da ilha, virada aqui para a praia onde estou, era a velha moça sem encantos, que se deitou com todos e com ninguém. Eu queria a outra face, eu queria o sul inexplorado, escondido dos olhares diários de todos. Eu queria desvendar o mistério da face oculta e dormir para todo o sempre com a descoberta que seria só minha.

Absolutamente certo do que queria, dei meia volta com meu caiaque, tranqüilo de que amanhã voltaria e, aí sim, eu seria um homem completo. Dormi e, como não poderia deixar de ser, sonhei com a ilha. Um sonho estranho, em que ao invés do caiaque um arco-íris maravilhoso me levava à minha amada, e que ali eu ficava para o todo sempre banhado pela mais fresca das brisas enquanto comia frutos desconhecidos e imaginários.

O dia seguinte foi o dia da espera. A cada dez minutos olhava para o relógio, aguardando às quatro da tarde, quando eu partiria. É óbvio que às três e meia eu já estava no mar, mas a triste verdade, senhores, é que tremi. Quando comecei a circundar a ilha, e já via de relance a face sul, as ondas cresceram. Descobri que circundar a ilha implicava em deixar de navegar na baía protegida e enfrentar o alto-mar. Subindo e descendo em volumes de água que me tratavam como tratamos formigas e mosquitos, animais desprezíveis, secundários e minúsculos, engoli minha paixão e, humilhado, remei de volta para casa.

Dormi, como era de se prever, como o pior dos homens. Dormi pisoteado, destroçado em minha pequenez incapaz de vencer aquele que eu dominava, o mar. Tive pesadelos e, se não estivesse entre amigos, negaria até o fim que uma lágrima carregada de um misto de tristeza e vergonha rolou de meus olhos.

Mas a catarse da noite anterior me fez forte. Acordei convicto de minha posição de dominador. Eu remaria e circundaria a ilha, ora. Ela me pertencia, o mar me pertencia. Quem havia de me segurar? Forte como nunca e sob uma chuva fina, que embaçava os olhos e remexia as ondas, eu remei. Remei rápido como há tempos não fazia e antes mesmo que o medo pudesse tomar conta de mim, eu enfrentava as ondas com a segurança de quem não tem o que perder, ou de quem não vislumbra a possibilidade de derrota.

Em pouco tempo ela, a face sul, se desabrochava para mim, só para mim, balançando entre ondas que iam de encontro às pedras e voltavam com força, num balanço sensual. Aquela ilha era minha, só minha. Não me importava, ou eu até mesmo ignorava, que há quinze minutos eu vira um casal de barco descendo aqui. Não me importava que qualquer um poderia descer aqui a qualquer momento. Ela sussurrava em meus ouvidos sua paixão, sua virgindade; discorria sobre meu direito de posse e eu, como amante bobo e apaixonado, acreditava e com cara de anjo pedia para que ela repetisse. Não me importava que a ilha não constasse em mapas cartográficos simplesmente porque seu tamanho era ridículo, e que se alguém fizesse um mapa que contivesse as ilhas ridículas ela seria a primeira a ser anotada. Nada disso me importava. Ela era a minha descoberta, só minha.

Com os músculos relaxados, recém saído do êxtase, recomecei a remar lentamente. A chuva parava e as últimas gotas caíam sobre meu rosto enquanto eu terminava de rodeá-la em meu caminho de volta. Foi aí que enxerguei pela primeira vez uma ilha que se escondia atrás da minha amada, e por isso nunca a vira da praia. Intocada, inflamada, olhava para mim como uma garota de dezesseis anos prestes a se entregar pela primeira vez. Sua face norte já carregava um traço ou outro de vivência, mas eu podia imaginar com um desejo ardente o seu inocente sul inexplorado. De lá uma voz doce chamava meu nome e guiava meu caminho com um arco-íris de cores fortes e vibrantes. Não havia o que fazer. Mais uma vez me pus a remar.

quinta-feira, janeiro 11, 2007

Onde é que há gente nesse mundo?

Quero começar o dia aqui com vocês do jeito que ele terminou ontem pra mim. Já na cama, lendo um dos meus poemas favoritos. Dia de poucos escritos, muitas leituras, coroado por um maravilhoso filme e idéias daquelas que valem a pena...

Poema em linha reta

Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que muitas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes da etiqueta,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda,
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de frete,
Eu que tenho feito vergonhas financeiras, pedindo emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sentido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não o pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia;

Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há nesse largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente nesse mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

Ego trips...

A agradabilíssima manhã em Angra (interrompida pelos testes da sirene da usina nuclear que está aqui do meu ladinho) foi o palco para que eu terminasse o segundo livro da jornada. Foi A Queda, Albert Camus.

Com muito, mas MUITO estilo, e uma elegância incrível, Camus tenta mostrar a LAMA total da existência humana. O nosso egoísmo, acima de tudo nosso egoísmo sem limites, que acompanhado da vaidade, faz de nós um gênero maldito. Algumas pitadinhas:

“Sempre me achei mais inteligente do que todo mundo, como já lhe disse, mas também mais sensível e mais hábil, atirador de elite, incomparável ao volante e melhor amante. Mesmo nos setores em que era fácil verificar a minha inferioridade, como o tênis, por exemplo, em que eu era um parceiro apenas razoável, era-me difícil não acreditar que, se tivesse tempo para treinar, superaria os melhores.”

“No fundo, nada contava. Guerra, suicídio, amor, miséria, prestava atenção nisso, é claro, quando as circunstâncias me obrigavam. Porém de uma maneira cortês e superficial. (...) Como dizer-lhe? Tudo isso resvalava. Sim, tudo resvalava.”

“Sem dúvida, às vezes, eu fingia levar a vida a sério. Mas, bem depressa, o que havia de frívolo na própria seriedade evidenciava-se em mim e eu continuava apenas a desempenhar meu papel da melhor forma que podia. Representava o eficiente, o inteligente, o virtuoso, o patriota, o indignado, o indulgente, o solidário, o edificante... (...) Eu estava ausente no momento em que ocupava o máximo de espaço.”

Não consigo discordar de Camus. Nunca tive o ser humano em tão alta conta, então o tombo não é tão grande assim. Do alto de nossas torres de marfim é que observamos o mundo. Distantes, alheios, concedendo graças aos outros pelo efeito que isso traz em nós mesmos, é assim que vamos vivendo.

Porém, há um ponto onde enxergo otimismo nesta nuvem negra. Por mais que façamos quase tudo somente em nossa ego trip, ela de uma maneira ou outra, invade a ego trip de muitos que estão ao seu lado. E a impacta de maneira decisiva, redefinindo rumos, emocionando, tocando... Quando Camus senta a bunda e escreve um livro como este, imerso em seus sonhos de grandeza e eu, décadas depois, leio, penso, reflito e reverbero o que li... mudo eventuais atitudes, altero pontos de vista e escrevo sobre isso... Quando você navegando aí lê o que eu escrevi, e reflete, e pensa, e discute no buteco amanhã com seu amigo, que dorme, e pensa e fala no café da manhã com a mãe... Neste momento temos egotrips em movimento, dialogando, e que, apesar de absolutamente fechadas em si, trocam calor com outras corpos e a vida se põe a rodar, a rejuvenescer, a criar, a pirar, a provocar... E isso é tudo menos pessimista. Isso é maravilhoso.

Sempre avançando!

Alf Lailah Oua Lailah em árabe é assim, ó:

ألف ليلة و ليلة

E se lê da direita pra esquerda!

Valeu, pai! ;)

terça-feira, janeiro 09, 2007

Meus casamentos

2003-2004: PowerPoint
2005-2006: Excel
2007: Abre-se com o Word bombando!

Será que vem um novo biênio? E 2009? Corel Draw na veia?

segunda-feira, janeiro 08, 2007

As gonzo as it gets...

Medo e delírio em Uberaba – Uma noite de ano novo – Parte I

O melhor da festa é esperar pela festa!

- Um bobo anônimo qualquer


Quando percebi, já era ano-novo e eu não tinha a mínima idéia de para onde ir. Os cariocas com quem estive o ano passado me juraram de morte caso reaparecesse por lá. Todos os amigos com casa na praia vinham me evitando desde o verão passado, quando um caso de insolação extrema combinada com uma química poderosa fez de mim persona non grata do Guarujá à Marataízes. O Nordeste ensolarado também estava fora de questão: simplesmente eu não tinha grana para isso.

A idéia de passar a virada do ano completamente bêbado e sozinho, no inferno do verão mineiro, observando jovens imberbes e/ou barrigudos em ridículos chapéus de cowboy passando gritando com seus carros pelas ruas revirava meu estômago como a pior ressaca dos últimos anos. A este pensamento horrível se juntava a visão de garotinhas de 16 anos de idade em mini-saias dignas de suas primas de 22 (estas já com filhos) saindo para as festas, despedindo-se de seus pais como se fossem para o convento no qual receberiam educação.

Era hora de fazer algo. Urgente. Agenda telefônica. Quem pode me ajudar com esta porra? Hum, esse não. Não também. Opa, este cara é bom. Não vai me agüentar até a noite do ano novo, mas pode sobreviver pelo menos até lá. E é tão sozinho que também não deve ter aonde ir. Maravilha, está vindo para cá.

Organizar uma festa que traga algum divertimento é fácil. Comece arranjando um lugar que favoreça a baixaria. Cantos escuros, sofás largados, tudo ajuda a relembrar os convidados de seus instintos mais depravados. Em seguida, garanta um som suficientemente alto para as 3 primeiras horas. Este é o tempo para que os convivas migrem do estado de alerta total com que chegam à festa para o momento em que passam a conviver dentro de suas bolhas de ar, trajes de isolamento do mundo, onde empregam cada mísero resto de sobriedade em estabelecer uma conversa (não necessariamente falada) que leve a pessoa ao lado para a cama. Daí conclui-se que o terceiro e misericordioso ponto deste breve curso de festas 1.0 é entupir essa gente toda de bebida. Muita bebida. Se algum convidado for do tipo que bebe pouco, desafie-o a cada minuto, deboche de sua masculinidade e use qualquer tipo de truque sujo (vale até o uso de seringas) para deixá-lo alto. Se for alguém que não bebe, force. Será a diversão de todos, inclusive do (ex) abstêmio que será eternamente agradecido – e lembre-se de entorpecer também a namorada, evitando dor de cabeça para o coitado. Com muita bebida, até a questão do número de homens e mulheres se torna secundária. Poucas mulheres acarretarão no deprimente espetáculo de homens se tocando, como jovens tigres aprendendo a caçar com a mamãe... no começo fingirão que brigam, desferindo falsas patadas e unhando de leve os irmãozinhos... e quando a coisa pegar fogo, será brincadeira de gente grande e melhor do que qualquer show de fogos de artifício que se encontra em Copacabana.

Para nossa sorte, a questão do lugar estava imediatamente resolvida. Com a casa dos meus pais vazia era apenas uma questão de rearranjar os sofás (e qualquer rato de puteiro é o melhor dos decoradores neste momento), abrindo espaço para uma pista de dança e criando cantos que funcionariam como espaços paralelos, portas de entrada para a luxúria, a esbórnia e a depravação. O som também não era problema dos maiores. Bastaram um ou dois telefonemas para encontrarmos um desses idiotas que preenchem suas vidas patéticas turbinando o som de seu carro. Sempre me perguntei o que levava um ser humano, em princípio racional, a gastar o quase nada que tem com um som que a partir do volume 15 já se torna insuportável. A única resposta que já encontrei é a mais óbvia de todas: pau pequeno.

Aliás, pau pequeno deve ser a resposta para muita coisa que se passa nessa terra. Ou não teríamos nossas caixas de e-mail invadidas por tsunamis de En.large YoUr Penn.is messages todos os dias. Que espécie de trouxa clica num anúncio desses e alimenta esta indústria a me mandar mais e mais e-mails ainda no dia seguinte? Trouxas com pau pequeno e grandes sons em seus carros. Esse tipo de trouxa.

Mas essa brincadeira de organizar uma festa começava a me cansar e era hora de me preparar para a maratona. Os próximos 3 dias não seriam para amadores e eu, como amador no trato de situações-limite com sobriedade, ou apagava e mandava aquela porra toda as favas ou desmoronaria junto do jogo insuportável do você me convidou mas não convidou meu amigo, posso levar meus oito primos que virão de fora?, eu vou mas desde que a Fê não vá, você pode chamar o Lucas PELO AMOR DE DEUS, EU FICO TE DEVENDO MINHA VIDA e outros trastes repugnantes que escutaríamos nas próximas 72 ou 96 horas. Por isso foi com prazer que desenterrei do meu armário as sobras natalinas: duas caixas de Stolichnaya, duas tequilas brancas e 3 amarelas (daquelas que vem o verme dentro), umas 5 garrafas pela metade de Red Label (originalmente falsetas, mas trocadas por originais durante a festinha de família), umas 15 pílulas finíssimas (tomando com amigos as 15 gêmeas destas durante o feriado de novembro jurávamos ter sido abduzidos por alienígenas descendentes do Raul Seixas) e umas porcarias dadas pelo meu primo de 17 anos que misturadas com álcool fizeram o Tio Oliveira – ah, que cena – confessar que traíra a Tia Violeta com a cunhada antes do noivado.

Infelizmente não era tudo de que eu precisaria, mas ao menos eu me sentia confortável para o início dos preparativos. Na tarde daquele dia 29 minha casa na Santos Dumont, reduto de bacanas emergentes e aristocratas quebrados, se tornava pelos próximos 3 dias um bunker, munido de duas linhas telefônicas como metralhadoras anti-aéreas, acompanhadas de aparelhos e aparelhos de celular de cada filho da puta que eu conhecia naquela cidade e passava por lá para conferir os andamentos e convidar seus amigos.

O esquema da festa seria dos mais simples e mesmo um otário com um currículo mínimo na noite entenderia o funcionamento. Qualquer homem que entrasse nos domínios do bunker na noite do dia 31 pagaria trinta reais para beber o quanto pudesse. Qualquer mulher teria acesso ao mesmo, só que pagando cinco pilas. Só entrariam pessoas com nome na porta ou expressamente autorizadas por mim. Um brutamontes bestialmente inteligente – mas com cara de quem não compreenderia qualquer frase que usasse uma proparoxítona – controlaria a entrada. O truque estava em cobrar dos mais bêbados duas ou três vezes e, se possível, se deliciar com os comentários dos idiotas no outro dia de manhã: putz, como eu queimei grana naquele esquenta! O brutamontes ficaria com 50% do cobrado em excesso e eu esperava ganhar grana suficiente para tapar os buracos que a cocaína que despejei na privada durante a última bad trip criou no meu parco orçamento.

As metralhadoras anti-aéreas trabalharam como nunca naquela e nas tardes seguintes. Uma infinidade de Renatas, Camilas, Julianas e Fernandas confirmavam suas presenças, entremeadas por eventuais Josecleides, Iaras, Claudetes e, porque não, Beatrizes e Anas Bárbara. Cada nome confirmado exigia um shot e quando a lista atingiu a marca centenária, na madrugada do dia 30 para o 31, demos os trabalhos por encerrados, não por acharmos que estava bom, mas por puro esgotamento das agendas telefônicas e a mais absoluta necessidade de encontrarmos ainda naquela noite um colo que nos curasse de 3 dias de viagem astral e nos pusesse de pé para a provação que nos aguardava na noite seguinte.

Livro 1 – FINISH HIM

GONZO!

Matei A grande caçada aos tubarões, do Hunter Thompson. Bonzinho, bem divertido em vários momentos. Thompson é o pai do gonzo journalism. São reportagens escritas sempre em primeira pessoa e nas quais o escritor é parte direta da ação. Nela, misturam-se ficção e realidade (muitas vezes com a ajuda de drogas, muitas drogas), enquanto o escritor descreve sua jornada e seus insights sobre o tema central do artigo/livro e tudo mais que o circunda.

O livro mais famoso de Thompson e a primeira obra gonzo é Medo e Delírio em Lãs Vegas (Fear and Loathing in Las Vegas, tem até um filme com o Johnny Deep, baseado no livro), que teoricamente seria um artigo sobre uma corrida de carros que aconteceria em Las Vegas e se torna “uma busca pelo sonho americano perdido, andando erroneamente pelas peculiares e decadentes figuras dos casinos da Strip de Vegas”. Uma pitadinha para sentirmos o drama. Estamos bem no começo do livro e Thompson (com o pseudônimo de Raoul Duke) e seu advogado samoano já entorpecidos estão viajando para Vegas e oferecem carona para um pobre menino:

“Por quanto tempo poderemos segurar?, me perguntei. Quanto tempo até um de nós começar a tagarelar louca e incoerentemente com este menino? E aí, o que ele vai pensar? Esse mesmo deserto solitário foi o último lar conhecido da família Manson. Será que ele vai fazer essa terrível relação quando meu advogado começar a berrar sobre morcegos e raias descendo sobre o carro? Se fizer... bem, vamos precisar cortar sua cabeça fora e enterrá-lo em algum lugar. Porque não preciso nem dizer que não poderemos deixá-lo ir embora. Ele nos denunciaria na mesma hora para uma agência da lei nazista de fim de mundo, e eles viriam nos caçar como se fôssemos cachorros.

Jesus, eu falei isso? Ou só pensei? Eu estava falando? Será que eles me ouviram? Olhei para o meu advogado, mas ele parecia não ter percebido nada, olhando para a estrada, dirigindo nosso Grande Tubarão Vermelho a uns 180 por hora. Nenhum som vinha do banco de trás.”

Para conseguir publicar loucuras como essas, Thompson virou um free lancer para revistas como a Playboy e a Rolling Stone. No entanto, de tudo o que li dele a melhor parte é a fase pré-gonzo, quando escrevia para o The Nation e o National Observer e produziu análises brilhantes sobre o movimento hippie, a esquerda não estudantil e a força aérea americana.

Do you like it that way, captain?

Uma das coisas legais dessa minha viagem é que as pessoas começam a recomendar livros que marcaram suas vidas num certo momento, e a bagunça vai enriquecendo...

Hoje mais cedo a Vi me sugeriu o Milagre nos Andes, do Nando Parrado (é a história daquele acidente do time de Rugby uruguaio, que caiu nos Andes, mas contada por um dos sobreviventes). Alguém mais leu?

Bom, quando ela comentou sobre o livro, na hora me lembrei de Apocalipse Now, que eu assisti há uns dias... Num certo momento, rola o seguinte diálogo entre um dos soldados que está num barco e o protagonista, logo após a famosa cena em que os americanos bombardeiam a praia de helicóptero, ao som das Cavalgada das Valquírias, de Wagner.

“- Do you like it that way, captain? When it gets hot and hairy?
- Fuck. You will never get the chance to know who you are in a factory in Ohio.”


Esse é o espírito.

Estou a 2 passos...

É com esta vista chata que eu vou ler, escrever e pensar durante os próximos dias. Perfeito!



Moisés e Virgínia, MUITO OBRIGADO!

7 notas, maestro!

Pra quem não sacou o Alf Lailah Oua Lailah ainda, vou copiar aqui o que meu pai escreveu...

"Tive que pesquisar para saber que Alf Lailah Oua Lailah é (o título original da) As Mil e uma Noites e o significado disto: estórias que se sequenciam... "

É isso aí! ;)

domingo, janeiro 07, 2007

Silêncio!

Depois de 8 anos de silêncio, interrompidos por murmúrios como business plans e trabalhos para a facul, voltamos à carga!
*
Velório

E na pequena sala de café da manhã daquele hotel decadente os três homens involuntariamente rendiam homenagem a si mesmos. Quem os olhasse à distância talvez não pudesse apontar muitas semelhanças já que, além de traços muito distintos, o tempo agredira mais uns do que outros. No entanto, eram idênticos os três. Homens solitários, sem uma alma que os olhasse com compaixão, absortos logo cedo em um pensamento burocrático qualquer e já desprovidos de qualquer intenção que fosse de grandeza ou de magnitude. Seus olhares mais pareciam feitos de metal opaco e as roupas traziam todas alguma marca que denunciava sua deterioração excessiva, apesar dos donos se sentirem absolutamente frescos e limpos ao colocá-las há poucos minutos. Comiam o pão com margarina como máquinas colocadas em modo de aquecimento e solenemente ignoravam qualquer sentimento de esperança. Inconscientemente entendiam a natureza de sua situação e reagiam da única maneira digna: enchiam a sala com um silêncio profundo, intenso e ensurdecedor como o de um velório. Assim, lembravam a si mesmos e aos desconhecidos companheiros que apesar de mais uma vez despertos traziam em si muito mais do mundo dos mortos do que dos vivos.

*

Um a um marcharam para fora do hotel, afinal tinham que preencher as próximas dezesseis horas com o quer que fosse. Mas suas ocupações, na verdade, não são importantes. Qual a real diferença entre o guardador de carros, o catador de papelão e o vendedor de bilhetes de loteria?

No entanto, ao menos para um deles, isto fez toda a diferença. Já eram quatro da tarde e ele ainda não havia vendido nem metade dos bilhetes que correriam na manhã seguinte. Cabisbaixo, murmurava um texto qualquer. “Milionário! Milionário! Quem quer....”. Neste exato momento sua lamúria foi interrompida por cinco dedos negros e esguios, carregados de anéis e que levavam um esmalte vermelho-escuro. Aquela mão pousou sobre seu braço cansado com uma leveza impossível de ser esquecida. Era como se pela primeira vez houvesse algo em sua vida que pudesse assim ser adjetivado: leve. À suavidade daquele toque ele respondeu com um bilhete e o gesto mecânico de recolher os dois reais. Mas seu braço ainda continuava dormente nos pontos em que fora tocado...

*

Um outro canto da cidade também era palco dos esforços para que as sôfregas dezesseis horas entre o despertar e o dormir fossem vencidas. Caminhando pela rua, sem qualquer interesse especial, ele viu algo cair da bolsa da mulher à sua frente. Instintivamente, como se não vivesse do que a rua oferecia e sim da educação de primeira linha que sua família lhe concedera, mas que nenhum benefício trouxera, ele gritou: “Ei! Você! Ei! Você deixou cair alguma coisa”. A moça que se assustara ao primeiro “Ei” e esboçara uma corrida parou. “A lente da minha câmera!”, disse ela. “Muito obrigado!”. Ele, quase assustado com a reação, somente assentiu com a cabeça e sorriu. “Nossa! Que sorriso lindo. Com a iluminação correta...”. Interrompida pelo celular que começou a tocar, ela atendeu-o e, logo após o alô, assoprou um obrigado, piscou, fez um sinal de adeus e seguiu no meio da multidão falando ao telefone. Ele ainda tentou gaguejar algo, mas era tarde. Porém o mundo somente começara a girar para os seus pensamentos: “Sorriso. Lindo. Iluminação...”

*

Não muito longe, as dezesseis horas de um outro homem eram preenchidas com um cachorro quente. Completo. O dia fora bastante rendoso, mas ele sabia que aquilo era uma questão de sorte e azar e amanhã tudo seria diferente. Sentado em uma banqueta engolia o sanduíche, indiferente ao gosto da mistura. Mas se somos indiferentes ao que sentimos todos os dias não se pode dizer o mesmo daquilo que sentimos uma única vez. E foi exatamente a um ponto único do passado que o perfume de uma velha que passara ao seu lado o levara. Um amor da juventude. O único amor da juventude. Não que ela que tivesse chegado a saber do amor que ele sentira, mas o sentimento fora vivo nele. Naquele momento passado e agora...

*

Mais uma vez amanhecia na pequena sala de café da manhã daquele hotel decadente. Lá estavam os três homens e todos os adereços da cena cotidiana: o pão amanhecido, a margarina, as roupas desgastadas. Também já se vislumbravam no horizonte as modorrentas dezesseis horas, clamando por preenchimento. O silêncio também não diferia, mas o ar trazia um quê estranho, instigante. Aqueles rostos mortos eram agora decorados com uma ponta de sorrisos mordazes, curiosos e irônicos. De certo modo o velório continuava, mas agora os convidados já insinuavam quem seria o futuro amante da viúva.

Meus retratos - III



Meus retratos - II





Meus retratos -I





Meus discos

20gb de mp3 – cortesia Soulseek

Meus livros - III

Viver para contar, Gabriel Garcia Márquez – Cortesia Lu Lupo
Todo mundo tem sua Macondo na infância!

The Catcher in the Rye, J. D. Salinger – Cortesia Lubeca
Porquê é tão falado? A descobrir!

Grande Sertão: Veredas, João Guimarães Rosa – Cortesia Ga
Uma nova linguagem?

O mais longo dos dias, Cornelius Ryan – Cortesia (o caralho) FNAC
Puro divertimento. Band of Brothers muito antes de Band of Brothers.

Madame Bovary, Gustave Flaubert – Cortesia (o caralho) FNAC
E Deus fez a luz. O início do realismo.

Mrs. Dalloway, Virginia Woolf – Cortesia (o caralho) FNAC
Uma viagem de um dia.

A queda, Albert Camus – Cortesia Déia
Can you handle the depression?

O futuro do capitalismo, Lester C. Thurow - Cortesia Déia (e Cintião tb)
Boas recomendações...

Os Maias, Eça de Queiroz – Cortesia (o caralho) FNAC
Libertinagem portuguesa. Pior ou melhor que a de hoje?

Meus livros - II

Viagem ao fim da noite, Louis-ferdinand Céline - cortesia (o caralho) Livraria Nobel
Escreve maravilhosamente bem e tem um otimismo... Uma pitada: “Nos dias de hoje ainda me acontece de encontrar Musyne, a cada dois anos ou quase, tal como a maioria das criaturas que no passado conhecemos muito bem. É o prazo de que precisamos, dois anos, para nos darmos conta, com uma só olhada, mas essa aí inenganável, como o instinto, das feiúras que um rosto, ainda que delicioso em seu tempo, acumulou. Ficamos como que hesitantes à sua frente, e depois findamos por aceitá-lo como tal, o rosto, com essa desarmonia abjeta, crescente, de todo o conjunto. Temos de dizer sim a essa cuidadosa e lenta criatura burilada por dois anos. Aceitar o tempo, esse quadro de nós. Podemos então dizer que nos reconhecemos inteiramente (como uma nota de dinheiro estrangeiro que recusamos a pegar à primeira vista), que não nos enganamos de caminho, que de fato seguimos a verdadeira estrada, sem nos termos concentrado, a infalível estrada durante mais dois anos, a estrada da podridão. E é só isso.”

D. Quixote de la Mancha, Miguel de Cervantes – Cortesia Mica
No comments...

Contos Fantásticos do Século XIX, org. Ítalo Calvino – Cortesia não lembro mais
Pra dar uma viajadinha eventual.

O Vermelho e o Negro, Stendhal - Cortesia mamãe
Reza a lenda que é um dos personagens (das personagens, esse lance de feminino em personagem é uma frescura) mais bem construídos da história.

Bonequinha de Luxo, Truman Capote - Cortesia Flavinho
Capote Rulez.

Dom Casmurro, Machado de Assis – Cortesia papai
Nunca li, tá passando da hora.

Poemas escolhidos, Fernando Pessoa – Cortesia papai
Antes que eu tire a máscara e descubra que eu não era mais eu...

How to adapt anything into a screenplay, Richard Krevolin – Cortesia não lembro mais
Afinal nunca se sabe quando pode baixar o santo roteirista!

O Mal-estar da pós modernidade, Zygmunt Baumann – Cortesia não lembro mais
Sempre o mal-estar, Zigmund após Zigmund...

As etapas do Pensamento Sociológico, Raymond Aaron – Cortesia Mica
Sempre bom ter acesso aos clássicos!

Meus livros - I

Vitaminas filosóficas, Theo Ross – cortesia Moisés
Breves discussões sobre diversos filósofos. Muito útil para a série Quote battles, que vocês conhecerão em breve.

A grande caçada aos tubarões – Histórias estranhas de um tempo estranho, Hunter Thompson - cortesia mamãe
Thompson é o rei do gonzo journalism. Entupa-se de álcool e drogas e conte uma boa história real sob o seu ponto de vista. Cuidado! As alucinações podem ser a realidade e vice-versa.

Big Bang, Simon Singh - cortesia Moisés
Do mesmo cara do Último Teorema de Fermat. Ciência palatável.

Respeito – A Formação do caráter num mundo desigual, Richard Sennett - cortesia Moisés
Boas recomendações. Veremos.

No limite da racionalidade – Convivendo com o capitalismo global, org. Will Hutton e Anthony Giddens – cortesia (o caralho) Livraria da Travessa
Aonde o capitalismo global irá nos levar?

Almas mortas, Nicolai Gogol - cortesia Xamilla
Você não tem curiosidade? Eu tenho!

O mundo é plano, Thomas Friedman – cortesia Lubeca e família
Nascido clássico, Pullitzer de 2005 senão me engano.

Meus livros, meus discos, meus retratos...

São estes aí que vão me acompanhar!