domingo, janeiro 07, 2007

Silêncio!

Depois de 8 anos de silêncio, interrompidos por murmúrios como business plans e trabalhos para a facul, voltamos à carga!
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Velório

E na pequena sala de café da manhã daquele hotel decadente os três homens involuntariamente rendiam homenagem a si mesmos. Quem os olhasse à distância talvez não pudesse apontar muitas semelhanças já que, além de traços muito distintos, o tempo agredira mais uns do que outros. No entanto, eram idênticos os três. Homens solitários, sem uma alma que os olhasse com compaixão, absortos logo cedo em um pensamento burocrático qualquer e já desprovidos de qualquer intenção que fosse de grandeza ou de magnitude. Seus olhares mais pareciam feitos de metal opaco e as roupas traziam todas alguma marca que denunciava sua deterioração excessiva, apesar dos donos se sentirem absolutamente frescos e limpos ao colocá-las há poucos minutos. Comiam o pão com margarina como máquinas colocadas em modo de aquecimento e solenemente ignoravam qualquer sentimento de esperança. Inconscientemente entendiam a natureza de sua situação e reagiam da única maneira digna: enchiam a sala com um silêncio profundo, intenso e ensurdecedor como o de um velório. Assim, lembravam a si mesmos e aos desconhecidos companheiros que apesar de mais uma vez despertos traziam em si muito mais do mundo dos mortos do que dos vivos.

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Um a um marcharam para fora do hotel, afinal tinham que preencher as próximas dezesseis horas com o quer que fosse. Mas suas ocupações, na verdade, não são importantes. Qual a real diferença entre o guardador de carros, o catador de papelão e o vendedor de bilhetes de loteria?

No entanto, ao menos para um deles, isto fez toda a diferença. Já eram quatro da tarde e ele ainda não havia vendido nem metade dos bilhetes que correriam na manhã seguinte. Cabisbaixo, murmurava um texto qualquer. “Milionário! Milionário! Quem quer....”. Neste exato momento sua lamúria foi interrompida por cinco dedos negros e esguios, carregados de anéis e que levavam um esmalte vermelho-escuro. Aquela mão pousou sobre seu braço cansado com uma leveza impossível de ser esquecida. Era como se pela primeira vez houvesse algo em sua vida que pudesse assim ser adjetivado: leve. À suavidade daquele toque ele respondeu com um bilhete e o gesto mecânico de recolher os dois reais. Mas seu braço ainda continuava dormente nos pontos em que fora tocado...

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Um outro canto da cidade também era palco dos esforços para que as sôfregas dezesseis horas entre o despertar e o dormir fossem vencidas. Caminhando pela rua, sem qualquer interesse especial, ele viu algo cair da bolsa da mulher à sua frente. Instintivamente, como se não vivesse do que a rua oferecia e sim da educação de primeira linha que sua família lhe concedera, mas que nenhum benefício trouxera, ele gritou: “Ei! Você! Ei! Você deixou cair alguma coisa”. A moça que se assustara ao primeiro “Ei” e esboçara uma corrida parou. “A lente da minha câmera!”, disse ela. “Muito obrigado!”. Ele, quase assustado com a reação, somente assentiu com a cabeça e sorriu. “Nossa! Que sorriso lindo. Com a iluminação correta...”. Interrompida pelo celular que começou a tocar, ela atendeu-o e, logo após o alô, assoprou um obrigado, piscou, fez um sinal de adeus e seguiu no meio da multidão falando ao telefone. Ele ainda tentou gaguejar algo, mas era tarde. Porém o mundo somente começara a girar para os seus pensamentos: “Sorriso. Lindo. Iluminação...”

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Não muito longe, as dezesseis horas de um outro homem eram preenchidas com um cachorro quente. Completo. O dia fora bastante rendoso, mas ele sabia que aquilo era uma questão de sorte e azar e amanhã tudo seria diferente. Sentado em uma banqueta engolia o sanduíche, indiferente ao gosto da mistura. Mas se somos indiferentes ao que sentimos todos os dias não se pode dizer o mesmo daquilo que sentimos uma única vez. E foi exatamente a um ponto único do passado que o perfume de uma velha que passara ao seu lado o levara. Um amor da juventude. O único amor da juventude. Não que ela que tivesse chegado a saber do amor que ele sentira, mas o sentimento fora vivo nele. Naquele momento passado e agora...

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Mais uma vez amanhecia na pequena sala de café da manhã daquele hotel decadente. Lá estavam os três homens e todos os adereços da cena cotidiana: o pão amanhecido, a margarina, as roupas desgastadas. Também já se vislumbravam no horizonte as modorrentas dezesseis horas, clamando por preenchimento. O silêncio também não diferia, mas o ar trazia um quê estranho, instigante. Aqueles rostos mortos eram agora decorados com uma ponta de sorrisos mordazes, curiosos e irônicos. De certo modo o velório continuava, mas agora os convidados já insinuavam quem seria o futuro amante da viúva.

Um comentário:

Marco disse...

Pai,

é isso aí. Catarse íntima é uma ótima definição. Valeu! ;)

Beijos,
Marco