sexta-feira, janeiro 12, 2007

A ilha

Quem me conhece sabe que tenho um quê meio estranho com o mar. Deve ser coisa de mineiro, essa distância toda que temos do oceano pode tudo, menos fazer bem. Somado todo o tempo que eu passei dentro da água salgada não deve dar para completar nem um semestre, mas mesmo assim me sinto um velho marujo, um rato do mar e das ondas, como se ele me devesse um respeito especial somente pela minha existência.

É óbvio que essa arrogância desmedida já rendeu caldos homéricos, ataques de desespero lá no fundo, onde não dá pé e a correnteza puxa, além de uma série de outros episódios que flutuam entre o ridículo e o divertido, agora que já passei por eles. Mas nada nunca tirou da minha cabeça que fui feito para o mar e ele para mim.

Por isso, não achei nada estranho quando comecei a olhar para a ilha aqui em frente e a sentir que ela retribuía meus olhares. No começo foi essa paquera à distância, não declarada, esse jogo de dissimulação que é o alimento do desejo. Mas o jogo foi avançando e tornando o encontro inevitável. E era óbvio que o passo de aproximação teria que ser meu.

Como uma paixão pré-adolescente que renasce mais tarde na vida (dessas de condomínio para quem é de São Paulo, ou da menina da rua debaixo, para quem é do interior), eu me lembrava vagamente de já ter explorado aquele território uma vez. Mas não tinha tanta certeza assim. E, fascinante, não me lembrava do seu gosto.

Comecei a ensaiar minha visita. Há uns dois dias, peguei o caiaque e depois do deprimente, quase comovente, episódio de tentar passar a zona de arrebentação, me pus a remar. No caminho, eu me perdia entre observações e dúvidas. Meus braços estão queimando muito? Nossa, devia ter trazido uma barrinha de cereal. Eu consigo chegar e voltar? Mas à medida que eu me aproximava e a possibilidade da conquista se tornava mais e mais factível, eu me sentia tomado por uma certeza inevitável: eu não me interessava por aportar naquela ilha.

Chegar ali, pela porta da frente, e pisar em sua pedra como tantos já fizeram? Não. Aquilo não era para mim. Eu precisava circundá-la. A face norte da ilha, virada aqui para a praia onde estou, era a velha moça sem encantos, que se deitou com todos e com ninguém. Eu queria a outra face, eu queria o sul inexplorado, escondido dos olhares diários de todos. Eu queria desvendar o mistério da face oculta e dormir para todo o sempre com a descoberta que seria só minha.

Absolutamente certo do que queria, dei meia volta com meu caiaque, tranqüilo de que amanhã voltaria e, aí sim, eu seria um homem completo. Dormi e, como não poderia deixar de ser, sonhei com a ilha. Um sonho estranho, em que ao invés do caiaque um arco-íris maravilhoso me levava à minha amada, e que ali eu ficava para o todo sempre banhado pela mais fresca das brisas enquanto comia frutos desconhecidos e imaginários.

O dia seguinte foi o dia da espera. A cada dez minutos olhava para o relógio, aguardando às quatro da tarde, quando eu partiria. É óbvio que às três e meia eu já estava no mar, mas a triste verdade, senhores, é que tremi. Quando comecei a circundar a ilha, e já via de relance a face sul, as ondas cresceram. Descobri que circundar a ilha implicava em deixar de navegar na baía protegida e enfrentar o alto-mar. Subindo e descendo em volumes de água que me tratavam como tratamos formigas e mosquitos, animais desprezíveis, secundários e minúsculos, engoli minha paixão e, humilhado, remei de volta para casa.

Dormi, como era de se prever, como o pior dos homens. Dormi pisoteado, destroçado em minha pequenez incapaz de vencer aquele que eu dominava, o mar. Tive pesadelos e, se não estivesse entre amigos, negaria até o fim que uma lágrima carregada de um misto de tristeza e vergonha rolou de meus olhos.

Mas a catarse da noite anterior me fez forte. Acordei convicto de minha posição de dominador. Eu remaria e circundaria a ilha, ora. Ela me pertencia, o mar me pertencia. Quem havia de me segurar? Forte como nunca e sob uma chuva fina, que embaçava os olhos e remexia as ondas, eu remei. Remei rápido como há tempos não fazia e antes mesmo que o medo pudesse tomar conta de mim, eu enfrentava as ondas com a segurança de quem não tem o que perder, ou de quem não vislumbra a possibilidade de derrota.

Em pouco tempo ela, a face sul, se desabrochava para mim, só para mim, balançando entre ondas que iam de encontro às pedras e voltavam com força, num balanço sensual. Aquela ilha era minha, só minha. Não me importava, ou eu até mesmo ignorava, que há quinze minutos eu vira um casal de barco descendo aqui. Não me importava que qualquer um poderia descer aqui a qualquer momento. Ela sussurrava em meus ouvidos sua paixão, sua virgindade; discorria sobre meu direito de posse e eu, como amante bobo e apaixonado, acreditava e com cara de anjo pedia para que ela repetisse. Não me importava que a ilha não constasse em mapas cartográficos simplesmente porque seu tamanho era ridículo, e que se alguém fizesse um mapa que contivesse as ilhas ridículas ela seria a primeira a ser anotada. Nada disso me importava. Ela era a minha descoberta, só minha.

Com os músculos relaxados, recém saído do êxtase, recomecei a remar lentamente. A chuva parava e as últimas gotas caíam sobre meu rosto enquanto eu terminava de rodeá-la em meu caminho de volta. Foi aí que enxerguei pela primeira vez uma ilha que se escondia atrás da minha amada, e por isso nunca a vira da praia. Intocada, inflamada, olhava para mim como uma garota de dezesseis anos prestes a se entregar pela primeira vez. Sua face norte já carregava um traço ou outro de vivência, mas eu podia imaginar com um desejo ardente o seu inocente sul inexplorado. De lá uma voz doce chamava meu nome e guiava meu caminho com um arco-íris de cores fortes e vibrantes. Não havia o que fazer. Mais uma vez me pus a remar.

5 comentários:

Anônimo disse...

Lindo...! Lindo...! Lindo...!
Quanta sensibilidade...

Beijos,
Enziminha

Anônimo disse...

Que beleza! Fique atento: há sereias na face sul...

Anônimo disse...

Pra resumir assim em uns três adjetivos, no máximo, que é a moda aqui nos comentários do blog: fresco, honesto, envolvente.

Anônimo disse...

Sabe que fiqui na dúvida se foi de fato ao mar ou não?... Genial!

Anônimo disse...

digno de publicacao......